ÉMILE DURKHEIM- Carlos Eduardo Sell Public

ÉMILE DURKHEIM- Carlos Eduardo Sell

Marcos Paulo Santana
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Vida e obras de Émile Durkheim descrita pelo professor Carlos Eduardo Sell.

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CAPÍTULO II ÉMILE DURKHEIM   A pretensão de conferir à sociologia uma reputação verdadeiramente científica será o principal objetivo da obra do pensador francês Émile Durkheim (1858-1917). Seguidor do positivismo de Augusto Comte, toda obra de Durkheim está voltada para dotar a sociologia do que até então mais lhe faltava: um método de análise. Daí a sua importância para a história do pensamento sociológico.Durkheim também forneceu para a sociologia estudos pioneiros na área da sociologia da religião e do conhecimento, bem como estudos empíricos sobre o fenômeno do suicídio. Além disso, este pensador é um dos grandes analistas do mundo moderno com sua tese da divisão social do trabalho. Através deste conceito, ele aponta para a complexidade da sociedade contemporânea, cuja marca característica é a diferenciação social e a especialização das funções, com todas as conseqüências que este fenômeno traz para a vida do homem, suas relações sociais e a própria organização da sociedade. I. VIDA E OBRAS Émile Durkheim, sociólogo francês, filho de rabinos, nasceu em 15 de abril de 1858 na cidade de Épinal, Alsácia. Iniciou seus estudos primários no colégio daquela cidade e lhes deu continuidade em Paris, no Liceu Louis Le Grand e na École Normale Superiére (1879). Teve como professores Foustel de Coulanges e Boutrox. Em 1882, Durkheim forma-se em filosofia e é nomeado professor em Sens, Saint Quentin e Troyes, iniciando neste período seu interesse pelas questões sociais. Entre 1885 e 1886, Durkheim faz uma importante viagem de estudos para a Alemanha, para estudar ciências sociais. Na Alemanha (Lepzig e Berlim) entra em contato com Wilhelm Wundt (1832-1920), fundador da psicologia. Desta viagem, Durkheim retorna com a intenção de desenvolver a sociologia na França, visando torná-la uma ciência autônoma. Em 1887 é nomeado professor de pedagogia e de ciência social na faculdade de Bordeaux, no sul da França. Trata-se do primeiro curso de sociologia criado em uma universidade. É neste período que Durkheim escreve suas principais obras e forma a base de seu pensamento social. Em 1893, ele defende sua tese de doutorado (A Divisão Social do Trabalho) e funda a revista “L’Anné Sociologique”, na qual foram publicados a maior parte dos trabalhos iniciais da escola sociológica francesa. Adquirindo grande notoriedade, no ano de 1902, Durkheim é convidado para tornarse professor suplente de pedagogia na Universidade de Sorbonne, em Paris. Em 1906 torna-se titular da cadeira e passa a lecionar paralelamente sociologia, que é transformada em cátedra no ano de 1913. No ano de 1914, começa na Europa a primeira guerra mundial. Com a morte de seu filho na guerra, Durkheim morre em Paris, no dia 15 novembro de 1917. Além de ser um dos maiores clássicos da sociologia, Durkheim também é o responsável pela introdução desta ciência no ensino universitário. É com Durkheim que a sociologia adentra no mundo acadêmico e se firma definitivamente como ciência. As principais obras de Émile Durkheim são: • 1893 – A divisão social do trabalho • 1895 – As regras do método sociológico 27 • 1897 – O suicídio • 1912 – As formas elementares da vida religiosa Além destes textos, pode-se mencionar ainda as seguintes obras póstumas do autor: • 1922 – Educação e sociologia • 1924 – Sociologia e filosofia • 1928 – O socialismo Contexto social e intelectual O período em que Durkheim viveu costuma ser chamado pelos historiadores de “belle époque”. Como o nome indica, este foi um período de progresso e otimismo, marcado por grandes invenções (eletricidade, avião, submarino, cinema, automóveis, etc.). Apesar deste clima de otimismo, já apareciam os problemas típicos da sociedade moderna (migrações, pobreza, criminalidade, etc.), chamados na época de “questão social”. Todo este contexto social, e sua ambigüidade característica, vai exercer uma grande marca no pensamento de Durkheim, que vai compartilhar do objetivo de consolidar as conquistas da sociedade moderna, eliminado o que ele julgava serem “problemas passageiros”. Dentre as influências fundamentais para se entender a formação do pensamento de Durkheim, podem-se destacar três correntes de pensamento: • Positivismo: partindo de Augusto Comte, Durkheim vai retomar a ênfase no poder da razão ( iluminismo ) e na superioridade da ciência (positivismo). Seu objetivo é fundar uma sociologia verdadeiramente “científica”, capaz de descrever as leis de funcionamento da sociedade e orientar o seu comportamento. • Evolucionismo: a idéia de aplicar a noção de “evolução” da natureza, elaborada por Charles Darwin (1809-1882), para o estudo da sociedade, já tinha sido tentada pelo inglês Herbert Spencer (1820-1903). Segundo Lakatos (1990, p.43-44) a principal contribuição de Spencer consiste no argumento de que “a evolução de todos os corpos (e, por analogia, a das sociedades) passa de um estágio primitivo, caracterizado pela simplicidade da estrutura e pela homogeneidade, a estágios de complexidade crescente, assinalados por uma heterogeneidade progressiva das partes”. • Conservadorismo: Edmund Burke (1729-1797), Joseph de Maistre (1754- 1821) e Louis de Bonald (1754-1840) são filósofos que se opuseram às transformações trazidas pela revolução francesa de 1789. Estes filósofos criticavam o racionalismo e a agitação do mundo moderno. Pregavam um retorno aos ideais de estabilidade da idade média e sua ênfase na religião. Embora Durkheim não rejeitasse o progresso, a ênfase conservadora na ordem vai influenciar as posições políticas deste pensador. II. TEORIA SOCIOLÓGICA FUNCIONALISTA 28 Na sua principal obra, “As regras do método sociológico”, Durkheim afirmava que os sociólogos, até então, tinham se preocupado pouco com a questão do método em sociologia. Segundo o autor, chegou a hora da sociologia elaborar “ um método mais definido e mais adaptado à natureza particular dos fenômenos sociais” (1978, p. 84). A partir desta preocupação, Durkheim vai se tornar responsável pela elaboração de uma das principais teorias sociológicas da ciência social moderna: a teoria sociológica funcionalista. 2.1 Epistemologia Antes de criar propriamente seu método sociológico, Durkheim tinha que se defrontar com as duas questões chaves da epistemologia sociológica : como ele concebia a relação entre indivíduo e sociedade e também como ele entendia o papel do método científico na explicação dos fenômenos sociais. Na resolução destas duas questões, podemos perceber claramente como o positivismo influencia e serve de pressuposto para a teoria durkheimiana. a) A sociedade é superior ao indivíduo Ora, se de acordo com o positivismo, a explicação da realidade está condicionada pelo objeto, seria natural que Durkheim chegasse a mesma conclusão sobre a relação entre o indivíduo e a sociedade: a sociedade (objeto) tem precedência sobre o indivíduo (sujeito). Em outros termos, Durkheim afirmava que a explicação da vida social tem seu fundamento na sociedade, e não no indivíduo. Não que Durkheim estivesse afirmando que uma sociedade possa existir sem indivíduos ( o que seria totalmente ilógico). O que ele desejava ressaltar é que uma vez criadas pelo homem, as estruturas sociais passam a funcionar de modo independente dos indivíduos, condicionando suas ações. Para Durkheim, a sociedade é muito mais do que a soma dos indivíduos que a compõem. Uma vez vivendo em sociedade, o homem dá origem a instituições sociais que possuem dinâmica própria. A sociedade é uma realidade “sui generis”: os homens passam, mas a sociedade fica. Por isto, a tarefa da sociologia deverá se encaminhar na explicação de como o todo (que é a sociedade) condiciona suas partes (os indivíduo Continuador da obra de Augusto Comte, a principal preocupação de Durkheim era resgatar a intenção de fazer da sociologia uma ciência “madura”, tal como já acontecia com a física, a química, a astronomia e outras ciências da natureza. Mas, o que seria uma ciência que atingiu a maturidade? Para Durkheim, a respota estava no método. Partindo dos pressupostos levantados por Augusto Comte, Durkheim vai se preocupar em dotar a sociologia das mesmas características das ciências da natureza. Em vista disso, em sua principal obra de metodologia (As regras do método sociológico), Durkheim vai afirmar que a “a primeira regra [da sociologia] e a mais fundamental é a de considerar os fatos sociais como coisas” ( idem, p.94). Ao equiparar os fenômenos sociais a “coisas”, Durkheim partia do princípio de que a realidade social é idêntica a realidade da natureza e que, portanto, equipara-se também aos fenômenos por ela estudados. Assim, tal como as “coisas” da natureza funcionam de uma forma independente da ação humana, cabendo ao cientistas apenas mostrar suas regularidades; as “coisas” da sociedade também são uma realidade distinta da ação humana. Por isso, ao tratar os fatos sociais como coisas, Durkheim recomendava que os sociólogos evitassem as pré-noções que já tinham sobre estas questões e que observassem os fenômenos sempre de acordo com suas características exteriores, da forma mais objetiva e imparcial possível. A semelhança entre seus objetos de estudo (ambos considerados como “coisas”) permitiu a este autor postular que, afinal, seus métodos de estudo também deveriam ser semelhantes Mas, o que significa, concretamente, tratar os fatos sociais como coisas? Na verdade, o sociólogo deve seguir os mesmos passos de qualquer outro cientista, como o físico, o químico, o biólogo, etc. Ou seja, o papel da sociologia consiste em “registrar” da forma mais imparcial possível a realidade pesquisada ( o objeto), tal como naquelas ciências. Cabe ao pesquisador apenas fazer um retrato da realidade pesquisada, pois ela é uma realidade objetiva, tão objetiva como qualquer “coisa” da natureza. Na percepção sociológica de Durkheim, portanto, a realidade (objeto) é que se impõe ao sujeito (observador), por isso, as ciências sociais deveriam adotar o mesmo método que as ciências da natureza. 2.2. Metodologia funcionalista Com base nestes dois pressupostos (de que a sociedade é superior ao indivíduo e de que as ciências sociais devem imitar o método das ciências da natureza), Durkheim já poderia pensar em um método adequado para entender os fenômenos sociais. Além disso, como ele partiu do pressuposto de que as ciências sociais deveriam usar métodos parecidos com as ciências da natureza, Durkheim acabou se inspirando na biologia como método orientador para a sociologia. Ao proceder de tal forma, Durkheim retomava as idéias de Herbert Spencer, que já afirmava que tanto a natureza quanto a sociedade obedecem a mesma lei: a lei da evolução. Mas, para consolidar a sociologia como ciência, Durkheim sabia que a metodologia desta ciência deveria responder muito claramente as duas perguntas que definem qualquer 30 método científico: qual o objeto de estudo da sociologia (objeto material) e como a sociologia deve proceder para explicar o seu objeto de estudo (objeto formal). Vejamos qual a resposta de Durkheim para cada um destes problemas. a) Objeto de estudo : fato social Partindo do pressuposto de que a sociedade tem precedência lógica sobre o indivíduo, Durkheim vai definir o objeto da sociologia como sendo o “fato social”! Vejamos a clássica definição deste conceito, dada por Durkheim no primeiro capítulo das “Regras do Método Sociológico”: é um fato social toda a maneira de agir, fixa ou não, capaz de exercer sobre o indivíduo uma coerção exterior, ou a ainda; que é geral no conjunto de uma dada sociedade tendo, ao mesmo tempo, uma existência própria, independente da suas manifestações individuais. (1978, p.93) Três aspectos devem ser destacados nesta definição. Para Durkheim, o modo como o homem age é sempre condicionado pela sociedade, pois estas formas de agir possuem um tríplice caráter: são exteriores (quer dizer, provém da sociedade e não do indivíduo), são coercitivos (ou seja, são impostas pela sociedade ao indivíduo) e são objetivas (quer dizer, têm uma existência independente do indivíduo). Tudo de acordo com o pressuposto básico de Durkheim: a sociedade é que explica o indivíduo. É porque são um produto da sociedade que os fatos sociais são exteriores, coercitivos e objetivos. ⇒ EXTERIORES FATOS SOCIAIS ⇒ COERCITIVOS ⇒ OBJETIVOS Porém, se já sabemos “o que” a sociologia estuda (seu objeto material), falta responder ainda a uma segunda questão,: “como” estudar os fatos sociais? Afinal de contas, por que eles surgem e por que eles existem? Que tipo de explicação podemos dar para eles? b) Objeto formal: método funcionalista É justamente respondendo a esta pergunta que Durkheim vai se tornar um dos principais formuladores da metodologia funcionalista. Para Durkheim, os fatos sociais (ou a maneira padronizada como nós agimos na sociedade) não existem por acaso. Estas formas de agir existem porque cumprem uma função. Esta idéia será apresentada por Durkheim no quinto capítulo de sua obra (regras relativas à explicação dos fatos sociais), quando ele afirma que: “quando nos lançamos na explicação de um fato social, temos de investigar separadamente a causa eficiente que o produz e a função que ele desempenha” [grifo nosso] (idem, p. 135). Na verdade, a explicação fucionalista não é uma criação de Durkheim. Trata-se de uma idéia que ele tomou emprestado de outros pensadores que se inspiraram na biologia, e 31 que Durkheim tratou de aprofundar . Esta mesma idéia tinha sido formulada antes dele por Herbert Spencer (que a retirou de Charles Darwin), mostrando a enorme influência que o evolucionismo exerceu sobre o pensamento cientifico daquela época. Para Durkheim, explicar os fatos sociais significa demonstrar a função que eles exercem. Todavia, esta explicação não se encontra no futuro (a utilidade que nós projetamos nas coisas), mas se encontra no passado: primeiro é preciso investigar a razão pela qual surgiu aquela prática social (sua causa eficiente), para depois determinar sua função. Esta era a inovação que Durkheim propunha em relação a Herbert Spencer: a primeira investigação (causa eficiente) deve preceder à segunda (sua utilidade social). Em relação a este método, devemos assinalar ainda duas coisas. Em primeiro lugar, que Durkheim compara a sociedade a um “corpo vivo”, em que cada órgão cumpre uma função. Daí o nome de metodologia funcionalista para seu método de análise. Em segunda lugar, como se repete novamente a idéia de que o todo predomina sobre as partes. Para Durkheim, isso implica em afirmar que a parte (os fatos sociais) existem em função do todo (a sociedade). E é justamente isso que a idéia de “função social” mostra: a ligação que existe entre as partes e o todo. Vamos traduzir isto na forma de um esquema bastante didático: 1. A sociedade é semelhante a um corpo vivo 2. A sociedade (como o corpo) é composta de várias partes 3. Cada parte cumpre uma função em relação ao todo Família Religião Empresa Escola Exército Leis Governo Lazer Analisando o quadro acima, você mesmo pode fazer o exercício de verificar qual a “função” que cada uma das instituições ali nomeadas cumpre para o bom funcionamento da sociedade. É na determinação da função social que estas instituições cumprem que a metodologia funcionalista procura explicar sua existência, bem como das nossas formas de agir, ou como queria Durkheim, dos fatos sociais. Esta é a essência da metodologia funcionalista, que apesar das inovações e aprofundamentos posteriores, constitui até hoje seu núcleo de idéias básicas. Embora a analogia do método durkheimiano com a biologia possa causar alguma estranheza, trata-se de uma contribuição refinada e complexa, que será fundamental para o desenvolvimento posterior da sociologia, abrindo, como dissemos, um dos primeiros “caminhos” de análise da realidade social. Mais tarde, a idéia de “função” será retomada na antropologia por Bronislaw Malinowski e Racliffe-Brown e passará a ocupar um papel fundamental na sociologia com as obras de Talcott Parsons e Robert Merton, pensadores que vão aprimorar o método de Durkheim, rebatizado mais tarde como “estruturalfuncionalismo”. III. MODERNIDADE E DIVISÃO SOCIAL DO TRABALHO 32 É claro que a longa obra de Durkheim não ficou restrita apenas à construção de um método para fazer sociologia. Como bom sociólogo, Durkheim também se dedicou a entender as sociedades concretas, tanto aquelas do passado, como o mundo no qual ele vivia. Vejamos como, ao longo das obras que escreveu, Durkheim demonstra que a sociedade vai modelando o comportamento social do homem e como, nestes textos, ele vai desenhando sua interpretação sobre a origem e as características do mundo social moderno. 3.1. A divisão social do trabalho (1893) Na primeira de suas grandes obras, Durkheim vai se preocupar em analisar qual é a função que a divisão do trabalho cumpre nas sociedades modernas. Nesta obra, o autor adota a tese de que a sociedade passa por um processo de evolução, caracterizado pela diferenciação social. Durkheim vai chamar a etapa inicial do processo de evolução social de “sociedade de solidariedade mecânica” e a etapa final deste processo de “sociedade de solidariedade orgânica”, como mostra o esquema a seguir: Solidariedade mecânica ⇒ Evolução ⇒ Solidariedade orgânica A teoria da modernidade de Durkheim é construída na interpretação polar destes dois tipos de sociedade, que ele procura explicar a partir dos seguintes elementos: Solidariedade Mecânica Solidariedade Orgânica Laço de solidariedade Consciência coletiva Divisão social do trabalho Organização social Sociedades segmentadas Sociedades diferenciadas Tipo de direito Direito repressivo Direito restitutivo Para Durkheim, o que distingue cada um destes momentos da evolução da sociedade, são os mecanismos que geram a solidariedade social : a consciência coletiva e a divisão social do trabalho. A solidariedade mecânica e a solidariedade orgânica são diferentes estratégias de integração das pessoas nos grupos ou nas instituições sociais. Elas correspondem também a diferentes formas de organização da sociedade (sociedades segmentadas ou sociedades diferenciadas) e podem ser percebidas de acordo com o tipo de organização jurídica predominante (repressivo ou restitutivo). Vejamos cada uma destas etapas da evolução social de forma separada. III.1.1. Solidariedade mecânica Segundo Durkheim, nas sociedades de solidariedade mecânica, os indivíduos vivem em comum porque partilham de uma “consciência coletiva” comum . Para o autor, a consciência coletiva pode ser definida como “um conjunto de crenças e sentimentos comuns à média dos membros de uma mesma sociedade, que forma um sistema determinado que tem vida própria”. Nas sociedades de solidariedade mecânica, existe total predomínio do grupo sobre os indivíduos. A semelhança entre eles também é forte, havendo pouco espaço para a individualidade. Portanto, a explicação para que os indivíduos vivam em sociedade, diz 33 Durkheim, está no fato de que eles partilham de uma “cultura comum” que os obriga a viver em coletividade. Quando Durkheim fazia estas análises, estava pensando em sociedades de tipo simples, como são as sociedades indígenas, por exemplo, em que a inserção dos indivíduos no grupo é fundamental para sua cultura. Mas, como demonstrar isto do ponto de vista sociológico? De que forma o sociólogo poderia constatar o predomínio da consciência coletiva sobre a conduta dos indivíduos? Para demonstrar este fenômeno, Durkheim optou pelo estudo das normas jurídicas que, segundo ele, são um dos meios pelo qual a sociedade materializa (ou torna concreta) suas convicções morais, que são um dos elementos da consciência coletiva. De acordo com a forma pelo qual ele é organizado, o direito é o símbolo visível do tipo de solidariedade que existe na sociedade. Nas sociedades de solidariedade mecânica temos o predomínio do direito repressivo, enquanto nas sociedades de solidariedade orgânica predomina o direito restititutivo. A diferença entre os dois é que, enquanto no direito restitutivo, o objetivo da lei e das penas é apenas restabelecer a ordem das coisas ; no direito repressivo temos o predomínio da punição. De acordo com a explicação de Durkheim, isto mostra a força da consciência coletiva sobre a vida dos indivíduos. Neste sentido, na sociedade de solidariedade mecânica todos os atos criminosos deveriam ser punidos, pois a violação das regras sociais representa um perigo para a coesão (ou solidariedade social). Logo, não são admitidas transgressões nas condutas individuais: os transgressores são punidos para mostrar aos outros membros do grupo o quanto custa desviar-se das regras coletivas. É neste sentido que o direito repressivo é um indicador bastante seguro do predomínio da consciência coletiva sobre a conduta dos indivíduos, indicando que se trata de uma sociedade de solidariedade mecânica. Finalmente, Durkheim observou que a estrutura das sociedades tradicionais era caracterizada por uma repetição de segmentos similares e homogêneos, que não tinham nenhuma relação entre si. Uma sociedade segmentada é aquela onde os grupos sociais (como aldeias, por exemplo) vivem isolados, com um sistema social que tem vida própria. O segmento basta-se a si mesmo e tem pouca comunicação com o mundo exterior. Neste tipo de sociedade, o crescimento dos membros não leva a uma diferenciação das funções, mas a formação de um novo grupo (segmento), que vai reproduzir as características do grupo social anterior. Pense na situação dos povos indígenas, por exemplo, que vão ocupando novos territórios e formando novas aldeias, mas sem que isto os leve a construir um sistema social mais abrangente. É deste modo que Durkheim concebe a estrutura das sociedades antigas: como sociedades segmentadas. III.1.2. Evolução social Para explicar como se dá a mudança deste tipo de sociedade e o surgimento do mundo moderno, Durkheim afirma que, com o tempo, a sociedade passa por um processo de evolução, caracterizado pela diferenciação social, cujo resultado é justamente um novo tipo de vida social, no qual predomina a divisão do trabalho. Segundo Durkheim, três são os fatores responsáveis pelo crescimento da sociedade: * volume, * densidade material 34 * densidade moral Para entender o que são estes conceitos, Raimond Aron nos fornece uma explicação bastante concisa: Para que o volume, isto é, o aumento do número dos indivíduos, se torne uma causa da diferenciação, é preciso acrescentar a densidade, nos dois sentidos, o material e o moral. A densidade material é o número dos indivíduos em relação a uma superfície do solo. A densidade moral é a intensidade das comunicações e trocas entre esses indivíduos. Quanto mais intenso o relacionamento entre os indivíduos, maior a densidade. A diferenciação social resulta da combinação dos fenômenos do volume e da densidade material e moral. [grifos nossos] (1995, p. 306). Com o crescimento quantitativo (volume) e qualitativo (densidade material e moral), ocorre na sociedade um processo de especialização das funções, chamado por Durkheim de divisão social do trabalho. Por isso, nas sociedade modernas, temos um novo processo de integração dos indivíduos na sociedade: a solidariedade orgânica. III.1.3. Solidariedade orgânica Na sociedade de solidariedade orgânica, os indivíduos estão integrados na coletividade porque cada um passa a depender do outro. Este fenômeno se deve à especialização de funções, ou, a divisão social do trabalho. As sociedades modernas, portanto, são altamente diferenciadas, sendo que cada indivíduo exerce funções bem específicas que são vitais para o funcionamento do sistema social. Pense num padeiro que depende do fornecimento de trigo, que precisa ser transportado e assim por diante É importante lembrar que a divisão social do trabalho, segundo Durkheim, não se refere apenas a especialização das funções econômicas. Pelo contrário, o que Durkheim observa, é que as sociedades modernas são caracterizadas por diferentes esferas sociais que se diferenciam e especializam cada vez mais: a economia, a vida política, a cultura, a educação, a arte e outras esferas; vão se separando cada vez mais entre si e adquirindo uma dinâmica própria de funcionamento. Dentro de cada uma destas esferas, por sua vez, podemos localizar ainda outros processos de diferenciação, como é o caso do setor econômico e sua grande diversidade de atividades. A originalidade da explicação durkheimiana, está em demonstrar que, longe de ser um entrave, este processo representa um novo mecanismo de integração social. É a própria especialização das funções e das pessoas que gera a solidariedade social, já que os indivíduos passam a ser inter-dependentes das atividades desenvolvidas em outros setores da vida social. Como conclusão, Durkheim afirma que a divisão social do trabalho não pode ser reduzida apenas a sua dimensão econômica, no sentido de que ela seria responsável pelo aumento da produção, sendo esta sua função primordial. Ao contrário, a divisão social do 35 trabalho tem antes de tudo uma função moral, no sentido de que ela passa a ser o elemento chave para a integração dos indivíduos na sociedade: Somos levados, assim, a considerar a divisão do trabalho sob um novo aspecto. Nesse caso, de fato, os serviços econômicos que ela pode prestar são pouca coisa em comparação com o efeito moral que ela produz, e sua verdadeira função é criar entre duas ou várias pessoas um sentimento de solidariedade (1995, p. 21). Além da mudança dos mecanismos que geram a integração social, a sociedade moderna também modifica o tipo de relações que se estabelecem entre o indivíduo e a sociedade. Para Durkheim, com a crescente diversificação das funções, a consciência coletiva perde seu papel de integração social e enfraquece. Isto, por sua vez, acaba tendo duas conseqüências importantes. Por um lado, existe uma maior autonomia dos indivíduos, pois pertencer à sociedade já não depende de se ter as mesmas idéias ou agir da mesma maneira (consciência coletiva comum). Ao contrário das sociedade tradicionais, onde o indivíduo era visto apenas como parte de um ente coletivo que o dominava, no mundo moderno, o indivíduo passa a distinguir-se do corpo social e tomar consciência de sua própria individualidade. A relação se inverte e, agora, é o indivíduo que pretende aumentar sempre mais seu raio de ação em relação ao mundo social. Todavia, e esta é a segunda consequência importante, o declínio da consciência coletiva e os anseios de liberdade podem levar a um excesso de egoísmo, colocar os indivíduos em choque entre eles , e comprometer o “bom funcionamento” da sociedade. Temos então uma divisão anômica do trabalho, que, segundo Durkheim, seria o grande problema da sociedade moderna. 3.2. O suicídio (1897) Os problemas de integração do indivíduo na sociedade moderna são retomados por Durkheim em outra de suas obras clássicas: O suícidio. Nesta obra, o pensador francês tenta mostrar que o comportamento de suicidar-se também possui causas sociais (lembre-se, a sociedade é que explica o comportamento do indivíduo). O suicídio, definido por Durkheim como “todo caso de morte provocado direta ou indiretamente por um ato positivo ou negativo realizado pela própria vítima e que ela sabia que devia provocar esse resultado” ,não se deve apenas a causa psicológicas, psicopatológicas ou mesmo a processos de imitação. Uma das forças que também determina o suicídio é social. Para entender este fenômeno, Durkheim distingue três tipos de suicídio: • Suicídio egoísta: quando não estão integrados à instituições ou redes sociais que regulam suas ações e lhes imprimam a disciplina e a ordem (como a família, a igreja, o trabalho), os indivíduos acabam tendo desejos infinitos que não podem satisfazer. Este egoísmo, quando frustrado, pode levar a ondas sociais de suicídio. Ele também pode ser constatado quando o indivíduo se desvincula de suas redes sociais, sofrendo com depressão, melancolia e outros sentimentos. • Suicídio altruísta: praticado quando o indivíduo se identifica tanto com a coletividade, que é capaz de tirar sua vida por ela (mártires, kamikases, honra, etc.); 36 • Suicídio anômico: é aquele que se deve a um estado de desregramento social, no qual as normas estão ausentes ou perderam o sentido. Quando os laços que prendem os indivíduos aos grupos se afrouxam, esta crise social provoca o aumento da taxa de suicídios. Pode-se notar claramente que, em cada um dos tipos de suicídio estudados por Durkheim, aparece a relação entre o indivíduo e a sociedade. O suicídio pode ser causado ou pelo excesso de peso da sociedade sobre o indivíduo, ou por falta de integração do mesmo na coletividade. Mas, em qualquer dos casos, suas causas serão sempre sociais. Nesta obra, aparece novamente a questão da anomia, que é, para Durkheim, o problema central das sociedades modernas. Ao contrário de fenômenos como o crime, que Durkheim considerava como um fato social normal; o suicídio era para ele um fato social patológico, que evidenciava que havia profundas disfunções na sociedade moderna. A existência do suicídio anômico era um indício de que o excessivo enfraquecimento da consciência coletiva, a perda de uma moral orientadora e disciplinadora dos comportamentos, além do exacerbamento do individualismo, representava um sério risco para a integração social e a preservação da sociedade. Neste texto, o tema da “anomia” vai se tornando cada vez mais um dos aspectos essenciais da reflexão durkheimiana e de seu diagnóstico sobre a modernidade. Voltaremos a este assunto, quando tratarmos do pensamento político de Durkheim. 3.3. As formas elementares da vida religiosa (1912) A mesma determinação do social sobre o particular pode ser sentida em uma das últimas obras de Durkheim: As formas elementares da vida religiosa. Embora escrita já no final de sua vida, trazendo assim algumas modificações no pensamento do autor, as teses fundamentais de Durkheim são reafirmadas nesta obra. Neste livro, à partir da análise do totemismo australiano, Durkheim procura elaborar uma teoria sociológica da religião. Para ele, todas as religiões são constituídas pela divisão da sociedade em duas esferas: a sagrada e a profana. Para Durkheim, a superioridade da esfera do sagrado não passa de uma percepção difusa que os homens têm da força do social sobre eles mesmos. A religião é a sociedade transfigurada. Mais uma vez, é a sociedade que é superior ao indivíduo e a religião não passa de uma expressão desse fato. Além de uma explicação para a origem da religião; Durkheim também desenvolve nesta obra uma teoria sociológica do conhecimento, mostrando que a capacidade do homem em explicar o mundo ao seu redor tem origem na sociedade, que serve de modelo para este processo. Para realizar suas pesquisas na área da teoria sociológica da religião, Durkheim parte daquela que considera como sendo a mais simples das religiões dentro do processo evolutivo: o totemismo. Esta religião, encontrada em vários grupos sociais australianos, não foi estudada diretamente por Durkheim, que se serviu de outros relatos para chegar às suas conclusões. Através do estudo do totemismo, acreditava ele, poder-se-ia aplicar as conclusões das pesquisas para a compreensão de todas as religiões, mesmo àquelas mais evoluídas e complexas. 37 Para Durkheim, a essência da religião está na distinção da realidade em duas esferas distintas: a esfera sagrada e a esfera profana. A esfera sagrada se compõem de um conjunto de coisas, de crenças e de ritos que formam uma certa unidade, que podemos chamar de religião. A religião envolve tanto o aspecto cognitivo ou cultural (crenças), quanto material ou institucional (ritos) da esfera sagrada. Quando as crenças religiosas são compartilhadas pelo grupo, temos o que o pensador chama de “igreja”. Quanto a esfera profana, trata-se daquele conjunto da realidade que se define por oposição ao sagrado, constituindo, em geral, a esfera das atividades práticas da vida: economia, família, etc. ESFERA SAGRADA Religião = (crenças + ritos) Igreja ESFERA PROFANA Atividades cotidianas Analisando os grupos sociais australianos, Durkheim sublinhou o fato de que os diversos clãs (grupos de parentesco não constituídos por laços de sangue) tinham certos símbolos que os identificavam, chamados de totem. Este símbolo do clã (um animal, uma árvore, etc.) era representado em diversos objetos, que passavam a ser considerados sagrados. O totem representa não só um ser em particular, mas também todos aqueles artefatos que o imitam (como uma imagem do jacaré, em relação ao próprio animal, por exemplo). Diante deste ser (e das suas representações), os indivíduos tinham que adotar comportamentos religiosos, que Durkheim estudou com cuidado. Em sua análise dos ritos religiosos, o autor distingue os ritos negativos (proibições), os ritos positivos (deveres religiosos) e ainda os ritos de expiação (cerimônias de perdão pelas violações cometidas), que constituem o conjunto de práticas que definem as religiões. É interessante notar que nestas tribos australianas, a divindade não é concebida como um ser pessoal, distinto dos homens. É por isso que Durkheim rejeita as teorias que explicam a origem da religião a partir deste pressuposto, como é o caso do animismo e do naturismo. Enquanto para o primeiro, a religião constitui a crença em um espírito, o naturismo postula que a divindade seria a transfiguração das forças naturais que o homem percebe agindo na natureza. No totemismo, a noção de divindade pessoal ainda não está elaborada. A divindade é concebida como uma força anônima e impessoal que encontramos em cada um dos seres, como animais, plantas ou outros objetos. É por isso que se trata da mais simples das religiões: o conjunto da realidade no qual esta força se encontra é que constitui a esfera sagrada. É por isso, enfim, que Durkheim afirma que a esfera sagrada, em oposição à esfera profana, constitui a essência de qualquer religião. Depois de definir o fenômeno religião, Durkheim preocupa-se em demonstrar sua origem, assinalando sempre o fato de que este fenômeno tem uma origem social. Na verdade, esta força difusa, anônima e impessoal, mas acima de tudo superior, que os homens sentem que agem sobre eles e ao qual devem obediência, não passa de uma percepção não elaborada da força da sociedade sobre o indivíduo. Como diz o próprio autor, “de modo geral, não há dúvida de que a sociedade tem tudo o que é preciso para despertar nos espíritos a sensação do divino, exclusivamente pela ação que exerce sobre eles; ela é, para seus membros, o que é uma divindade para os fiéis”. Mais uma vez, a 38 idéia de que é a sociedade que explica o comportamento dos indivíduos aparece confirmada por Durkheim, também para o caso da origem e da própria essência da religião. Além de uma análise da religião propriamente dita, esta obra de Durkheim traz também o que podemos chamar de uma teoria sociológica do conhecimento. Partindo do pressuposto de que a ciência e as outras formas modernas de pensamento têm sua origem na religião (que são os primeiros sistemas de representação do mundo), o autor parte então para o estudo das suas origens sociais. A tese central de Durkheim é que classificamos os seres do universo (o mundo natural) porque temos o exemplo das sociedades humanas. Vejamos como isto se dá. No totemismo todos os seres eram classificados ou na esfera sagrada ou na esfera profana. Os entes ou objetos que representassem o totem (objetos, plantas, animais, membros da tribo, partes do corpo, etc.) pertenciam ao mundo sagrado, enquanto o restante das coisas existentes pertencia ao mundo profano. Portanto, a religião forneceu ao homem um critério a partir do qual ele podia classificar e ordenar as coisas do mundo. As categorias do pensamento humano, como as noções de tempo, espaço, gênero, espécie, causa, substância e personalidade, têm sua origem na religião, ou, em outras palavras, na sociedade. Foi tomando a sociedade, suas relações hierárquicas (sociais) e sua crenças como modelos, que o homem foi construindo suas primeiras explicações do universo, aplicando as categorias do mundo religioso (ou social) ao mundo natural. Com esta teoria, Durkheim julgava poder encontrar uma saída para o dualismo da teoria epistemológica, dividida entre a concepção que julgava que a origem do conhecimento provinha da experiência (teoria empirista) ou de idéias inatas no indivíduo (teoria racionalista). Para o pensador francês, se as experiências individuais fornecem ao indivíduo o conteúdo ou a matéria do conhecimento, é a sociedade que constrói no homem as categorias lógicas (como a noção de tempo, espaço, causalidade) pelo qual ele organiza os dados da experiência. A própria noção de causalidade (que é o princípio científico de que todo fenômeno tem sempre um causa eficiente, que explica a origem do fenômeno) tem sua raiz na idéia do “mana”, ou seja, o ser divino que está materializado no totem e é responsável pela “força”, vida ou movimento das coisas. Mais uma vez, Durkheim volta ao pressuposto que guia todas as suas obras: a sociedade é o fundamento lógico que explica o comportamento humano. Assim, a sociedade também é resp existe uma grande divisão social do trabalho. Outro fator importante, ressaltado por Durkheim é a evolução da idéia de indivíduo. A percepção de que o indivíduo é o fundamento da sociedade é muito diferente do mundo antigo, onde o grupo predominava sobre as pessoas. Esta idéia, portanto, também têm raízes sociais (e uma evolução histórica), que foram muito bem estudadas por Durkheim. Estas idéias poderiam ser apresentadas da seguinte forma: SOCIEDADE TRADICIONAL SOCIEDADE MODERNA Micro sociedade Macro sociedade Sociedade simples Sociedadade complexa Predomínio do coletivo Predomínio do individual A complexidade da sociedade e a emergência dos individualismo no Ocidente são traços essenciais para se entender o nascimento da modernidade. E é justamente o diagnóstico destes elementos como definidores do mundo moderno que faz de Durkheim um dos grandes clássicos do pensamento sociológico. IV. PROJETO POLÍTICO CONSERVADOR Como afirmamos no início deste capítulo, a época em que Durkheim vivia se caracterizava por um sentimento de otimismo, ligado a crença na ciência e no progresso tecnológico. Segundo se pensava, ainda restavam alguns problemas (denominados de questão social), mas com o uso da ciência (sociologia), tudo seria normalizado. Com base nestes pressupostos, a teoria positivista assumiu uma atitude de defesa da sociedade emergente (a sociedade moderna ou capitalista), sendo sua função apontar os problemas passageiros e normalizar a situação. 4.1. Função política da sociologia O grande lema dos positivistas era “ordem e progresso”. Segundo estes autores, depois das grandes transformações e agitações ocorridas no surgimento da sociedade moderna, tudo voltaria à tranqüilidade típica da idade média. Influenciados pelos filósofos 40 conservadores (Burkhe, De Maistre e Bonald), os teóricos do positivismo sabiam que não se podia mais voltar atrás na história, mas eles queriam resgatar para o mundo moderno aquela que foi a maior marca do período medieval: a integração da sociedade em um todo ordenado e coerente, fundado em valores sólidos e eternos. Mas, ao contrário dos filósofos conservadores, eles não rejeitavam as transformações da ordem industrial e política que tinham sido gerados pela revolução industrial e pela revolução francesa. Estes fenômenos eram vistos como conquistas positivas, mas que não tinham sido acompanhados por uma idêntica modificação nos códigos morais da sociedade. Somente uma nova moral poderia restabelecer a ordem social, e fazê-la funcionar adequadamente. Para que isto acontecesse, a sociologia teria uma papel fundamental. Na visão funcionalista, a sociedade é como um corpo integrado, em que cada parte cumpre sua função. Ora, se existem problemas na sociedade, é porque alguma de suas partes não está cumprindo regularmente sua função. Cabe à sociologia localizar quais são as partes que apresentam problemas na sociedade e restaurar seu “bom funcionamento”. Para regularizar o funcionamento da sociedade, a sociologia deveria ainda apontar aqueles elementos que ainda não estavam ajustados e integrados à estrutura social. Desta forma, o equilíbrio, a tranqüilidade e a “ordem” voltariam a existir na sociedade. É com base nesta idéia, que aparece em Durkheim a distinção entre os fatos sociais normais e os fatos sociais patológicos. Na sociedade, podem aparecer comportamentos que representam “doenças” e, por isso, eles devem ser isolados e tratados. Estas doenças ou patologias representam fenômenos que não cumprem mais sua função e atrapalham a continuidade da sociedade. Estas idéias, infelizmente, levaram a sociologia de Durkheim a uma visão política profundamente conservadora. Como a sociedade era comparada com um corpo, não fazia sentido transformá-la. Para a sociologia, a única solução possível para os problemas era “preservar “ (conservar) a sociedade, assim como o médico deve preservar o corpo de seus pacientes. Se existe algum problema, não há como mudar todo o conjunto da sociedade: a única solução possível seria restaurar o funcionamento das partes ou mesmo eliminar o problema. A tradição funcionalista, portanto, coloca toda ênfase no equilíbrio e na integração social, e todas as formas de conflito ou de contestação são vistos como desvios e anomalias que precisam ser eliminados. Desta forma, os movimentos que contestam a ordem vigente e buscam a mudança, não encontram respaldo nesta teoria, pois ela está comprometida com a ordem vigente e com sua preservação. Trata-se, portanto, de um projeto político conservador. 4.2. O problema da anomia Na passagem da sociedade de solidariedade mecânica para a sociedade de solidariedade orgânica, Durkheim já havia chamado a atenção para o problema do excesso de egoísmo (ou individualismo exacerbado). Segundo sua teoria, com a divisão social do trabalho, a força da consciência coletiva diminui, exacerbando ainda mais o egoísmo das pessoas. Esta é, para Durkheim, a grande contradição do mundo moderno. Se, de um lado, existe maior autonomia para o indivíduo, por outro, existe o risco de que o excesso de liberdade leve a desagregação social. 41 Para Durkheim, era justamente o excesso de egoísmo que gerava os conflitos de classe que opunham trabalhadores e patrões em acirradas lutas sociais. No entanto, julgava ele, o movimento socialista não deveria ser desprezado, na medida em que ele era um sinal de que algo estava errado. Durkheim chegou a dedicar vários artigos para analisar o socialismo, que ele considerava uma variante do comunismo. Mas, o problema dos socialistas é o fato de que eles não detectavam a verdadeira causa dos problemas sociais, que não era para um ele um problema cuja raiz estava na economia, mas era um problema de ordem moral. Tal como Durkheim já havia detectado na “Divisão Social do Trabalho”, a especialização das funções e o declínio da consciência coletiva gerava o que ele chama de “anomia” (do grego a + nómos, que significa ausência de normas). Faltava para a sociedade um conjunto de orientações morais que guiassem a conduta dos indivíduos e os integrassem na sociedade, como acontecia na solidariedade orgânica. Durkheim reconhecia que, apesar da margem de liberdade que o mundo moderno trouxe ao indivíduo, esta liberdade poderia acabar num excesso de egoísmo, se as ambições e desejos ilimitados do homem não encontrassem um limite. O homem precisava de um “sentido” para a vida que guiasse sua conduta e lhe inculcasse o sentido do dever e da disciplina. Como tudo isto eram funções dos códigos morais, que estavam em declínio, os conflitos se tornaram generalizados e a integração social estava comprometida. A anomia, portanto, era o egoísmo generalizado por falta de uma orientação moral. Um dos fatores responsáveis por esse dilema era o enfraquecimento da religião. Nas sociedades do passado, era a religião que ditava os valores e as normas da sociedade, moderando os desejos dos indivíduos e suas ambições, possibilitando assim a integração social. Mas, na sociedade moderna, este papel deveria ser desempenhado pela razão, que ainda não havia achado os caminhos para realizar esta tarefa, ou, como diria Durkheim, ainda não havia fabricado novos deuses (valores) que substituíssem os antigos. Embora a ciência tivesse um papel importante neste processo, Durkheim não achava, como Comte, que a sociologia devesse apontar com exclusividade quais os novos valores morais que regeriam a conduta dos indivíduos. A criação de uma religião da humanidade, como Comte havia feito, era algo estranho para Durkheim. Para este autor, a escolha dos valores morais e das regras sociais que deveriam reger a conduta dos indivíduos e restabelecer a ordem social caberiam à própria sociedade. Buscando colaborar neste sentido, Durkheim aponta dois elementos presentes na realidade de sua época que, segundo ele, poderiam dar uma resposta ao problema da ordem social: um elemento de ordem moral e um elemento de ordem institucional. Do ponto de vista moral, Durkheim acreditava que o único valor que poderia conter o excesso de egoísmo presente no mundo moderno era o valor do indivíduo. É importante perceber que em Durkheim, o culto do indivíduo (que ele chamava de individualismo) não se confunde com o egoísmo. Tratam-se de coisas distintas. Para o pensador francês, o problema do mundo moderno não está na liberdade do indivíduo em si mesma, mas no excesso dela, que é o egoísmo. Assim, vemos que, apesar da posição metodológica de Durkheim (no qual tudo que é individual resulta do social), é no indivíduo que ele vê a 42 solução dos problemas do mundo moderno. Quando os homens tomarem consciência do valor do ser humano, dizia ele, os laços de solidariedade, fraternidade e respeito poderiam ser retomados. Somente o “culto de indivíduo” e de sua liberdade, que deveriam ser considerados como valores sagrados, poderia oferecer um fundamento moral para a eliminação do egoísmo e dos conflitos sociais. Mas, quais seriam as instituições responsáveis pela difusão da “nova moral” e do “culto do indivíduo”, já que as religiões tinham perdido a importância que tinham antes? Inicialmente, Durkheim pondera as possibilidades de que a família ou o Estado pudessem cumprir este papel. Mas, a família também já apresentava, naquela época, perda de prestígio, e o Estado lhe parecia algo muito abstrato e afastado do indivíduo. Para o pensador francês, a única instituição capaz de restaurar os valores na sociedade moderna seriam as corporações. De acordo com a explicação de Raymond Aron, Durkheim: Chama de corporações, de modo geral, as organizações profissionais que, reunindo empregadores e empregados, estariam suficientemente próximas do indivíduo para constituir escolas de disciplina, seriam suficientemente superiores a cada um para se beneficiar de prestígio e de autoridade. Além disso, as corporações responderiam ao caráter das sociedades modernas, em que predominava a atividade econômica.[grifo nosso] (1995, p. 318). Agindo diretamente no mundo do trabalho, as corporações difundiriam a nova moral do “culto do indivíduo” e eliminariam os conflitos de classe, sinais de que a sociedade estava anômica (ou carente de normas). Com isso, a divisão social do trabalho estaria consolidada e as disfunções e patologias da sociedade (as lutas de classe) dariam lugar a uma sociedade integrada e harmônica. A sociedade alcançaria, então, o grande objetivo visado pelos positivistas e funcionalistas: a ordem e o progresso! 4. BIBLIOGRAFIA Em relação ao pensamento de Durkheim, o estudante poderá aprofundar seus estudos à partir da pesquisa das seguintes obras. a) Obras de Émile Durkheim DURKHEIM, Émile Durkheim. Da divisão social do trabalho. São Paulo: Martins Fontes, 1995. DURKHEIM, Émile Durkheim. As regras do método sociológico. Trad. Maria Isaura Pereira de Queiroz. São Paulo: Cia. Editora Nacional, 1974. DURKHEIM, Émile Durkheim. O suicídio. 6. ed. Lisboa: Presença, 1996. DURKHEIM, Émile Durkheim. As formas elementares da vida religiosa. São Paulo: Martins Fontes, 1995. 43 DURKHEIM, Émile Durkheim. Sociologia e filosofia. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1970. FRIDMAN, Luiz Carlos. Emile Durkheim e Max Weber: socialismo. Rio de Janeiro: Relumé-Dumará, 1993. GIANOTTI, José Arthur. Durkheim. São Paulo: Abril Cultural (coleção Os pensadores), 1978. RODRIGUES, José Albertino. Durkheim. São Paulo: Ática (coleção grandes cientistas sociais no 01), 1995. b) Textos complementares ARON, Raymond. As etapas do pensamento sociológico. 4. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1993, p. 295-375. BELLAMY, Richard. França: liberalismo socializado. In -----. Liberalismo e sociedade moderna. São Paulo: UNESP, 1994, p. 107-186. FERNANDES, Florestan. O método de interpretação funcionalista na sociologia. Os fundamentos empíricos da explicação sociológica. Rio de Janeiro: Livros Técnicos e Científicos, 1978. GIANNOTTI, José Arthur. A sociedade como técnica da razão: um ensaio sobre Durkheim. In Seleções CEBRAP, Exercícios de filosofia, no 02, p.43-84 (São Paulo, 1975). GYDDENS, Anthony. A sociologia política de Durkheim. In -----. Política, sociologia e teoria social: encontros com o pensamento social clássico e contemporâneo. São Paulo: UNESP, 1998, p.103-146. GYDDENS, Anthony. Durkheim e a questão do individualismo. In -----. Política, sociologia e teoria social: encontros com o pensamento social clássico e contemporâneo. São Paulo: UNESP, 1998, p.146-168. MEKSENAS, Paulo. A concepção funcionalista de sociedade: o positivismo de Émile Durkheim. In -----. Sociologia. 2. Ed. São Paulo: Cortez, 1993 (coleção magistério do 2o grau. Série formação geral).
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